Preto no Branco: Era uma manhã de domingo
Por Max Pereira @Pretono46871088 @MaxGuaramax2012
Não, não era a manhã de um domingo qualquer. Durvalino, depois de uma noite mal dormida, virava-se de um lado para o outro em sua cama. Aquele silêncio perturbador que pairava na velha pensão de Dona Vanda na rua Voluntários da Pátria em Botafogo, RJ, não era, para ele, um bom presságio. Afinal, por que diabos ele havia escolhido justamente aquela pensão que ficava há alguns quarteirões de General Severiano, ou seja, exatamente no território do inimigo?
Não, definitivamente não era a manhã de um domingo qualquer. Era a manhã do dia 19 de dezembro de 1971. Naquele dia que entraria para a história de um povo preto e branco, um fantasma, igualmente branco e preto, tirava a tranquilidade de Durvalino e de milhões de outros torcedores apaixonados.
Afinal, correndo por fora e tomando a sua sopa quente pelas beiradas do prato o Galo Forte e Vingador entraria em campo horas mais tarde no Templo do Futebol, para decidir, diante do então temível Botafogo de Jairzinho, o Furacão da copa de 70, do ex-atleticano Djalma Dias, de Carlos Roberto, de Zequinha, de Wendell e de Valtencir, o primeiro campeonato brasileiro de futebol.
O campeonato Brasileiro de 1971 foi decidido em um triangular final. Atlético, São Paulo (de Gérson, Pedro Rocha, Toninho Guerreiro e Cia) e o Botafogo, que tinha em Jairzinho, o Furacão da Copa de 70, ainda soprando forte e com o poder de devastar defesas inteiras, a sua grande arma, chegaram cada qual com méritos próprios para esta grande decisão, não obstante, para muitos especialistas o alvinegro carioca e o tricolor paulista serem os grandes favoritos ao título e o Galo apenas um franco atirador, um intruso. No jogo final do triangular, Jairzinho era a grande esperança do Botafogo que vinha de derrota para o Tricolor paulista por 4 a 1. Ao Galo bastava o empate depois da sofrida vitória por 1 a 0 sobre o São Paulo.
Durvalino nunca soube precisar quantas vezes, aterrorizado com as arrancadas de Jairzinho e, sempre antes que o Furacão mandasse a bola para as redes de Renato, acordou sobressaltado, suando em bicas, quase arrítmico, ofegante e, claro, aliviado ao certificar-se de que era apenas mais um pesadelo. Nem a visão que não sabia premonitória de um gol de Dario Peito de aço de cabeça, aproveitando um cruzamento que viria da esquerda, o deixava inteiramente confiante.
Atleticano é exatamente assim. Acredita, sofre, vai da agonia ao êxtase, do encantamento à angústia e, suas noites, antes de qualquer decisão ou na reta final de um campeonato que pode ser conquistado, se dividem entre sonhos e pesadelos.
Há quase 50 anos, quando o arbitro Armando Marques de Mesquita da Federação Paulista de Futebol e, que não era o Armando Marques famoso, apitou o fim do jogo e o placar do Maracanã indicava que o Atlético havia derrotado o time da estrela solitária por 1 x 0, gol de Dadá, marcado exatamente como ele havia “visto” em seus devaneios, e se tornado o primeiro campeão brasileiro da história do esporte no Brasil, Durvalino chorou, comemorou, agradeceu ao seu santo de devoção um sem número de vezes, gritou, pulou, dançou, riu, gargalhou, abraçou e foi abraçado, beijou e foi beijado, falou coisas sem sentido e, também, se manteve inerte, catatônico, sem mexer um musculo sequer e olhando para o vazio por um tempo que pareceu uma eternidade.
O nosso herói, que sempre foi muito arredio ao convívio humano, havia chegado sozinho ao Rio de Janeiro. Após o jogo se sentia amigo de todos que passaram a lhe ser tão próximos e íntimos como nunca o foram antes. Durvalino iria direto do Maracanã para a Rodoviária. Afinal, seu ônibus para BH sairia à meia noite. Seria a melhor viagem de sua vida. Quis o destino, porém, que ele conseguisse uma carona com um até então desconhecido, mas que a alegria comum transformou no seu melhor amigo, no melhor amigo que a vida tinha lhe oferecido até aquele domingo que ficaria marcado para sempre sem sua vida.
Antes de sair da Cidade mais maravilhosa impossível, ele e Juvenal, o novo amigo, se deram ao direito de um mergulho nas águas de Copacabana. E o fizeram de roupa e tudo. Se já tinham lavado a alma no Maracanã, eles que já estavam encharcados pelas lágrimas e pelo suor que haviam vertido, agora lavavam seus corpos. Entre os prédios que circundam a orla da Princesinha do Mar e bem acima da Ladeira dos Tabajaras eles, emocionados, viam lá no alto a imagem iluminada do Cristo Redentor que, certamente, e eles não tinham dúvida nenhuma a respeito, abençoava a conquista do Galo mais querido do mundo.
Mesmo sem conseguir fechar os olhos uma vez sequer, Durvalino e Juvenal chegaram à capital dos mineiros, literalmente transformada na Cidade do Galo, descansados, felizes, realizados e de bem com a vida, como nunca antes haviam se sentido. Tudo era belo. Era uma manhã de segunda-feira. Mas, não era de uma segunda-feira qualquer. Na verdade, para Belo Horizonte e para cada atleticano as manhãs que se seguiram não eram de um dia qualquer.
Hoje, passados quase 50 anos, a cada jogo do Atlético que o aproxima de uma nova conquista do Brasileirão, Durvalino parece se rejuvenescer e é sacudido, dia sim, o outro também, por aquele mesmo turbilhão de sentimentos que mexeram, remexeram, estremeceram e chacoalharam aquele jovem de 18 anos que passou uma noite intensa e bem atleticana na velha pensão de Dona Vanda na rua Voluntários da Pátria em Botafogo, RJ, e que acordou em parafuso naquela manhã de domingo.
Da mesma forma que naquela noite mal dormida ele “viu” em seus entressonhos o gol de Dadá Maravilha, o nosso velho atleticano antevê em seus devaneios que a cada vez mais cidade do Galo, caso o título do Glorioso se confirme, será sacudida por uma explosão de emoções ímpar em sua história.
Viúvo há algum tempo e vivendo sozinho, Durvalino, a cada vitória do Atlético, já não sabe mais o que é solidão. As pessoas lhe sorriem, ele e o mundo também. Em uma manhã de domingo dessas, fazendo a sua tradicional caminhada pela orla da Lagoa da Pampulha, ele se viu frente a frente com o velho amigo Juvenal. Coincidência? Artimanhas dos deuses do futebol? Há anos não se viam.
O encontro não programado, mas muito festejado, selado com um abraço carinhoso e a compreensão silenciosa entre si sobre o que ambos já vinham experimentando nessa caminhada do Atlético rumo ao tão sonhado título, não só os fez rememorar aquele já distante 19 de dezembro de 1971, mas, também, a revisitar aqueles sentimentos que os fizeram se aproximar, a se identificar e a se tornarem amigos. Olhando para além das águas desta vez não viram o Cristo Redentor. Viram o Mineirão, quem sabe o palco dessa tão aguardada conquista.
E foi nessa manhã de domingo que os dois velhos amigos firmaram um compromisso. Se o Galo for campeão, eles retornarão exatamente àquele ponto da Orla e, como fizeram em Copacabana há quase 50 anos, certamente já encharcados pelo suor e pelas lágrimas que verterão, se banharão, de roupa e tudo, lavando alma e corpo e soltarão aquele grito que está entalado na garganta há tanto tempo.
Definitivamente, esta não foi uma manhã de domingo qualquer, assim como não têm sido um dia qualquer os dias do atleticano nessa reta final de temporada e, muito menos, o serão, caso o sonho se torne realidade, os dias que se seguirão à conquista do título.
Os personagens desta história são fictícios e qualquer semelhança com pessoas e fatos da vida real é mera coincidência. Ou não?