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Gestão alvinegra! A receita do Galo

Foto: Bruno Cantini / André Cantini

 

Prof Denílson Rocha
07/08/2020 – 03h
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Quem gosta de futebol passou, nos últimos tempos, a se interessar também pelo que acontece fora das linhas do campo. Fair play financeiro, governança, compliance, balanço… vários termos que eram dominados apenas pelos especialistas da área passaram a ser parte do vocabulário e das discussões nas mesas de bar (até a pandemia nos tirar esse prazer) e das redes sociais. E para muitos, essa mudança tem bastante relação com o sucesso esportivo do Flamengo, que se tornou uma referência no Brasil, que alguns tentam colocar como uma verdadeira “receita de bolo” a ser seguida pelos demais clubes. E aí que mora o perigo.

Quem estuda Administração está bastante acostumado a utilizar estudos de caso – ou “cases”, porque falar em inglês fica mais bonito – como instrumento de aprendizado. Como o ensino da gestão não tem um laboratório como em várias áreas das ciências exatas ou ciências biológicas, o uso de situações específicas e reais ajudam a trazer para o debate e para o ensino um lado mais prático. Porém, um dos cuidados tomados é sempre alertar que o caso ocorre em uma situação muito específica, na qual os recursos materiais, humanos ou financeiros são únicos e dificilmente é possível repetir aquela circunstância em outro ambiente ou outra empresa. Então, em relação ao que temos no futebol brasileiro atualmente, quem disse que o modelo adotado pelo Flamengo é o único a ser aplicado?

Uma obra de referência em gestão de futebol (e que cito frequentemente neste espaço) é o “A bola não entra por acaso”, de Ferran Soriano, que conta a história de reconstrução do Barcelona. Neste livro, o autor, que era diretor do clube, fala que o Barcelona era um clube endividado, com despesas aumentando acima das receitas, com déficit crescente e esportivamente sem conquistas. Naquela circunstância, “a economia do clube estava perto da falência”. Ou seja, tal lá como cá. A situação do Barcelona era muito parecida com o que temos visto com bastante frequência nos clubes brasileiros, incluindo o Galo.

 

Soriano diz, então, que havia dois possíveis caminhos:

“1) Um programa prudente e moderado de evolução. Uma redução imediata das despesas para passarmos alguns anos de austeridade, de travessia do deserto, um tempo no qual não se poderia investir nem no time nem em praticamente nada para recuperar um pouco a economia antes de voltar a crescer.

2) Uma revolução. Um esforço combinado de redução de gastos supérfluos, reestruturação da dívida e investimento imediato no time. Construir um time atraente, competitivo, que levasse o Barcelona de volta à primeira linha e que gerasse a renda que autofinanciasse o investimento realizado”.

O Barcelona adotou o segundo caminho. E fica claro que o Flamengo adotou o primeiro. Por quê? Porque o Barcelona se via bastante atrás de clubes como o Manchester United, enquanto o Flamengo, mesmo com problemas, ainda tinha condições melhores que a da maioria dos clubes brasileiros. A mudança se faz conforme as condições de disputa, de competitividade. Simples assim.

 

E o Atlético nessa história?

Ninguém tem dúvidas que o Atlético precisava (há muito tempo) de mudanças drásticas na gestão financeira e esportiva. Precisava de buscar melhores resultados financeiros e, especialmente esportivos. Mas se há, no mínimo, dois caminhos, por que os “especialistas” insistem em dizer que a escolha do Galo é inadequada e que deveria seguir a “receita” do Flamengo?

O trabalho de transformação do Flamengo é longo. Alguns citam que começou em 2009, ano em que o clube foi campeão brasileiro e cujas receitas de patrocínio e TV eram bastante superiores à da maioria dos demais clubes brasileiros. Já o trabalho iniciado no Atlético encontra o clube em posições do meio da tabela no campeonato e com receitas de matchday inferiores à de clubes como o Bahia ou o Fortaleza. Pior que isso, o Atlético começa a “corrida” para transformação com anos de atraso em relação a Grêmio, Bahia, Fortaleza, Ceará, Athlético, Inter e Palmeiras, que já vem fazendo o dever de arrumar a casa há muito tempo. Assim, além da transformação, é preciso recuperar o tempo perdido. Ou seja, não basta evolução, é preciso uma revolução.

Para qualquer qualificado especialista em gestão, este diagnóstico seria bastante claro. O que o Atlético enfrente é bastante diferente do que o Flamengo enfrentou. Então, fica bastante estranho quando observamos as reportagens, análises e postagens em redes sociais sempre criticando o caminho adotado pela direção do Galo. Mais incrível é perceber que associam o modelo adotado pelo Atlético ao que ocorreu no rival local – e sequer consideram as irregularidades ocorridas no outro lado da Lagoa, que ninguém mostrou qualquer coisa similar no lado de cá.

 

Precisamos ter atenção a alguns pontos na mudança a ser realizada no Galo.

O caminho escolhido pelo Galo tem riscos? Claro. Os investimentos realizados podem não trazer o retorno esperado. Não há garantia de ganhos esportivos ou mesmo da valorização dos atletas. Mas a falta do investimento traz o risco de perder competitividade, visibilidade e receitas. Qualquer modelo adotado envolve riscos e o papel do gestor é gerenciar estes riscos. Pode dar errado? Claro. Assim como pode dar certo. Não há certezas e o trabalho é para diminuir os erros e ampliar os resultados.

As contratações são pelo “mecenato”? Claro que não. Há investimento tanto do Clube quando do apoiador. Os aportes realizados no Galo já foram explicados infinitas vezes e deverão aparecer no balanço como “empréstimos” – e empréstimo não é mecenato. Isso é legítimo e legal. Não fere a nenhum regulamento. Enquanto isso, para o apoiador, o que teve de mídia espontânea e visibilidade nas últimas semanas têm um valor elevado. A exposição da marca MRV em função dos aportes no Atlético foi muito superior ao que seria alcançado se o recurso tivesse sido aplicado diretamente em publicidade e espaços na mídia. Ou seja, o Atlético ganha e o apoiador também. Não há favores ou mecenatos. É negócio.

Para alguns “especialistas”, venda de camisa e sócio torcedor não paga a conta dos investimentos no futebol. Uma ação essencial para transformação do Barcelona foi a contratação do Ronaldinho – um jogador diferenciado, “vendedor de camisas”. Mas o que se vende em camisa paga? Diretamente, não. O clube fica com algo próximo a 15% do valor de cada camisa. Entretanto, um jogador diferenciado aumenta a venda de ingressos (bilheteria), atrai sócios torcedores, amplia a venda de produtos, expande a visibilidade do Clube e gera receitas de patrocínios e TV (pay per view). Ainda sem ter o “vendedor de camisas”, o Galo vem tendo crescimento nas receitas com sócio torcedor e venda de produtos simplesmente porque a Massa acredita que o time está melhor, está competitivo. E o dinheiro arrecadado daí não vai virar pó ou desaparecer, como parecem acreditar os “especialistas”. Na verdade, são receitas muito úteis para manutenção do Clube e para o investimento no futebol – mesmo que não paguem a conta toda. Marketing bem feito gera receitas.

Outro ponto que incomoda aos “especialistas” é a remuneração da comissão técnica do Galo ou mesmo dos atletas contratados. Sem avaliação quanto ao que realmente recebem, quantos atletas promissores o Atlético perdeu por colocá-los nas mãos de comissões técnicas menos qualificadas? Qual o potencial de desenvolvimento esportivo e consequente retorno financeiro dos jovens atletas que o Atlético atualmente coloca nas mãos de um técnico reconhecidamente de alto nível? As intervenções para mudança na base, com Júnior Chávare, e o jovem elenco profissional, com Sampaoli, mostram um perfil de investimento tanto com objetivo esportivo quanto com objetivo financeiro. E aí, mais uma para os “especialistas”: venda de atletas precisa ser incluída como receita recorrente. Um clube saudável precisa captar e desenvolver talentos tanto para uso no próprio time quanto para vendas que auxiliam a pagar as contas – e a transformação do Flamengo, o “exemplo”, passa também por excelentes vendas de atletas.

A enorme desconfiança que ainda paira no processo de reconstrução do Atlético está na falta de transparência, na falta de comunicação clara e direta com a torcida e com a imprensa. A publicação do balanço foi um péssimo exemplo: demorou mais que o necessário e não houve justificativas plausíveis. Faltam balancetes para mostrar, com mais agilidade, como estão as finanças do Clube. Mais que isso, os diagnósticos e planos, estruturados com o apoio das consultorias contratadas, já deveriam ter sido apresentados até mesmo para diminuir a ansiedade da torcida. Por que tanta demora e tanto segredo? Assim como nos bons restaurantes, a cozinha deve estar disponível para que as pessoas conheçam como é feito cada preparo.

Aos catastrofistas que contam os dias para o Atlético sucumbir como o rival, é melhor ter paciência porque este dia pode demorar. Aos especialistas em receitas prontas, é melhor observar Grêmio, Bahia e outros clubes brasileiros que trazem alternativas e temperos diferenciados. A receita do Flamengo não é única. A receita do Galo não é garantia de sucesso. Mas pode mostrar que, em Minas Gerais, há receitas diferentes. O sabor amargo como o jiló, na receita do rival. E o doce sabor da ambrosia, feita com simplicidade e paciência, que esperamos na receita Atleticana. Que Sette Câmara, Lásaro e demais gestores do Galo tenham a qualidade das melhores cozinheiras mineiras e que mostrem aos “especialistas” de receitas prontas e conclusões precipitadas que, em Minas, “apressado come cru”.