Silas Gouveia
Do Fala Galo, em Belo Horizonte
02/12/2019 – 17h
Siga nosso Instagram: @FalaGalo13
Estamos próximos de completar 35 anos da tragédia de Heysel, na Bélgica (29/05/1985), quando numa final de Liga dos Campeões da Europa entre as equipes do Liverpool, da Inglaterra, e Juventus, da Itália, um confronto entre torcedores das duas equipes terminou com o saldo de 39 de mortos e mais de 600 feridos e abalou as estruturas do futebol europeu, mudando-o radicalmente. A partir dali, a forma como as autoridades policiais e entidades esportivas como as federações, clubes e administradores dos estádios de futebol passaram a tratar o evento de uma partida de futebol foi transformada literalmente.
Já no Brasil, muito pouco mudou ou quase nada se aproveitou do triste episódio para que as lições pudessem gerar aprendizado e evitar tragédias nos estádios brasileiros. O famoso legado da Copa do Mundo trouxe ao país arenas modernas e mais confortáveis e também melhorias em segurança para o público presente. Mas nem de longe chega a ser um ponto forte, ou capaz de se evitar que uma tragédia possa acontecer dentro e nos arredores dos estádios, mesmo falando apenas daqueles estádios que passaram por reformas e se transformaram em modernas arenas esportivas. Imaginem então os demais, que ainda possuem estruturas antigas e arcaicas, mas que são a maioria dos estádios brasileiros.
Os recentes episódios de violência e depredação de estádio, ocorridos no clássico entre Atlético e Cruzeiro, e no jogo do Cruzeiro contra o CSA, no Mineirão, deram mostras mais uma vez da ineficiência das medidas de controle ou de segurança nos estádios. Somados a isto, há uma grande parcela de falta de educação, atitudes irracionais e atos discriminatórios de alguns torcedores. Afinal, uma partida de futebol cria elementos bastante fortes para que seja aflorada a verdadeira personalidade das pessoas, que muitas vezes denotam incapacidade de conviver com um fracasso e a dor de uma perda (mesmo que seja de um simples jogo de futebol).
Em um jogo de futebol estão presentes elementos capazes de transformar as pessoas e trazer à tona traços de personalidades que muitos buscam esconder da sociedade, mas que o escudo do anonimato e a sensação de impunidade que o “efeito manada” transmite aos agressores, faz com que alguns se transformem em bestas extremamente agressivas, capazes de atos de completa selvageria sem qualquer receio de provocar, inclusive, mortes àqueles que tenham sido identificados por eles como possíveis inimigos, mesmo que pelo simples fato daquela pessoa não ser de sua convivência pessoal, não interessando que seja torcedor de clube rival ou não.
Há falhas visíveis e escancaradas em todas as esferas e ações. Não há como excluir de responsabilidade ninguém, nem mesmo o mais pacato dos torcedores, pois eles acabam servindo de cobertura aos marginais que se infiltram entre os demais. Mas é claro que os responsáveis maiores para se evitar que tragédias possam acontecer são as autoridades governamentais, os parlamentares, os órgãos de segurança, os administradores dos estádios, os clubes, e por último os torcedores, que têm seus direitos assegurados, mas também têm obrigações a serem cumpridas.
Em Belo Horizonte, as duas arenas já existentes foram completamente reformadas para a Copa do Mundo de Futebol, e mesmo assim há muito o que mudar e melhorar. O Mineirão, apesar de ter sido o palco dos recentes episódios de violência e depredação, possui estrutura melhor que o Independência, em todos os sentidos, mas principalmente em relação à segurança.
Após a apresentação em entrevista coletiva dos nomes dos envolvidos no episódio das garrafas, como acabou ficando conhecido, fomos em busca de complementar nossa matéria sobre os episódios que aconteceram no clássico do dia 11/11/19 entre Atlético e Cruzeiro. Os nomes divulgados foram os de Ricardo Pereira da Silva, 43 anos, que exibiu a garrafa em uma área restrita aos camarotes e de Mateus Silva Martins, 23 anos (suspeita-se haver grau de parentesco com o dono do camarote), que arremessou o objeto (segundo a polícia um balde de gelo) nos atleticanos.
Após a divulgação feita pela Polícia Civil (um destes nomes nós já havíamos apurado, mas não divulgado), o Fala Galo buscou novamente contato com os principais envolvidos nos acontecimentos, a empresa proprietária do camarote identificada como sendo de onde foram arremessados objetos contra torcedores e a administradora do Mineirão. Obtivemos os seguintes retornos.
APVS
FG – Dr. Rogério Leonardo, advogado representante da APVS, o senhor gostaria de fazer algum comentário sobre os resultados das investigações apresentadas na coletiva à imprensa pela Polícia Civil?
APVS – Sem comentários, continuamos apoiando o trabalho das autoridades para identificar e responsabilizar aqueles que forem considerados responsáveis.
FG – Sobre o provável parentesco entre um dos envolvidos (no episódio do arremesso de garrafas e baldes na torcida) e o Sr. Alexandre Scarpelli (sócio proprietário da APVS em BH) também não?
APVS – Não entendemos que essa informação seja relevante, uma vez que desde o primeiro momento a APVS se colocou à disposição para colaborar na elucidação dos fatos e entregou a listagem com todos os convidados.
MINEIRÃO
Após um extenso debate com o representante do Mineirão, O Sr. Rivelle, acerca da verdadeira raiz dos problemas relacionados à violência nos estádios, onde o mesmo apresentou sua visão pessoal (não representativa da administração do Mineirão), chegamos a um consenso sobre responsabilidades de medidas que poderiam ajudar a coibir ao menos os episódios mais violentos e assim proteger aqueles que vão aos estádios apenas para se divertir e obtivemos algumas informações.
FG – Gostaria de saber se o Mineirão quer complementar alguma informação relativa principalmente às medidas de segurança que envolvem vocês e também saber se alguma providência adicional está sendo tomada para coibir atos de vandalismo e violência nas dependências do Mineirão.
Mineirão – Tem um setor no Mineirão que se chama Centro de Controle de Operações, onde em dias de jogos trabalham a PM e a segurança do Mineirão. Lá é feito o monitoramento das câmeras. Quando ocorre qualquer tipo de tumulto, essas pessoas informam aos seguranças privados (caso eles não tenham visto) e eles agem tentando conter. Só que eles não têm poder de polícia. Quando eles não conseguem agir, entra a tropa de choque da PM. Quando chega nesta situação, a tropa de choque intervém para resolver a situação.
Quando há algum tipo de situação que precise das imagens das câmeras, os órgãos de segurança, ou a justiça solicitam as imagens e o estádio passa para que haja a investigação.
Dependendo do crime cometido (quebrar cadeira, por exemplo), coisas menos graves, se o infrator for identificado, ele é detido e levado para o juizado que funciona no estádio. Lá mesmo ele é julgado e sai com a pena que tem que cumprir
FG –Obrigado pelas informações.
Com base em tudo o que apuramos é que nos veio à memória o trágico episódio do Estádio de Heysel na Bélgica. Por isso, vamos nos valer da frase do jornalista Nicolas Ribaudo, que estava presente no dia desta tragédia. As palavras de Ribaudo foram as seguintes:
“As mudanças não ocorreram depois do desastre, mas sim depois dos processos e das condenações”.
Há uma necessidade urgente em se alterar as posturas de todos os envolvidos em episódios como os ocorridos recentemente em Minas Gerais, mas que se espalham Brasil afora. É necessário e urgente, que além das medidas protetivas e de contenção de tumultos, que seja criada uma política de prevenção da violência. Em vez de tentar conter os baderneiros depois do início dos confrontos, é necessário que polícia passe a identificá-los previamente. Todos os recursos para isto já existem e pouca coisa precisa ser feita para aprimorá-los. Falta, sobretudo, vontade política para tal.
Depois de tudo o que ocorreu e das medidas tomadas por cada elo deste complexo quadro analisado, fica claro que enquanto não houver responsabilização e punição severa a todos os envolvidos, pouco ou quase nada irá mudar em termos de segurança nos estádios ou em shows de grande presença de público. Os administradores dos estádios cumprem o que a lei lhes exige. Nada mais que isso, visto que cada ação estará relacionada a um custo adicional, sem necessariamente haver uma contrapartida financeira para tal. Assim, se protegem de qualquer punição que lhes possa vir a ser imputada.
Por outro lado, proprietários de espaços considerados “especiais” (VIP), como no caso dos camarotes do Mineirão, não assumem qualquer responsabilidade pelos atos praticados por pessoas que eles próprios convidaram a participar. Escondem-se dentro das diversas falhas da legislação, com o argumento de que todas as medidas solicitadas pelas autoridades foram cumpridas e que todas as informações possíveis foram repassadas. Muito pouco se observada a gravidade dos acontecimentos e dos riscos que imputaram aos torcedores de uma forma geral, e não somente àqueles presentes nas áreas onde foram arremessados garrafas e baldes de gelo.
Além disso, o Estatuto de Proteção do Torcedor também precisa ser alterado. As punições nele contidas são mais punitivas aos clubes e muito brandas aos torcedores. Nada se fala ou define, por exemplo, das punições aos estádios ou seus administradores. E todos sabemos que onde não há punição severa impera a lei do mais forte. Aqueles que têm o poder nas mãos protegem os que podem servir a algum propósito de interesse próprio ou político e isso ajuda na percepção da impunidade, que acaba nos levando à sensação de descrença nas leis que, por sua vez, nos remete ao aumento de proibições, mas que nunca atacam os verdadeiros males que originam os problemas: educação, prevenção, monitoramento e punição rígida.
Recentemente, dia 26/11/2019, foi sancionada e publicada no Diário Oficial da União uma alteração no estatuto de defesa do torcedor (Lei 10.671 de 15/05/2003), tornando mais rígida as punições a torcedores violentos. De acordo com o site Agência Brasil, na nova legislação “a torcida organizada que, em evento esportivo, promover tumulto, praticar ou incitar a violência ou invadir local restrito aos competidores, árbitros, fiscais, dirigentes, organizadores ou jornalistas será impedida, assim como seus associados ou membros, de comparecer a eventos esportivos pelo prazo de até 5 anos”. Antes a punição tinha a duração de 3 anos. Estas punições se estendem para dias e locais em que não são aqueles do evento público, como por exemplo, nas concentrações ou campos de treinamentos e até mesmo em hotéis onde os atletas estiverem hospedados.
Só para usarmos o exemplo citado nesta matéria, após o desastre de Heysel todos os times ingleses que possuíam estádios tiveram de instalar sistemas de monitoramento por câmeras, com geração de imagens que permita a polícia fazer uma varredura virtual capaz de identificar claramente torcedores envolvidos em brigas e badernas. Dessa forma, quando um hooligan era localizado pelo sistema de câmeras, o mesmo era retirado imediatamente do estádio. O trabalho de simples monitoramento foi substituído pelo trabalho de prevenção, feito de forma discreta e ordeira, evitando assim um possível início de tumulto, mas, sobretudo, servindo de exemplo para possíveis parceiros e “comparsas”. Claro que na Inglaterra este sistema foi refinado e aprimorado, passando a ser utilizado como um serviço de inteligência, onde existem profissionais aptos a estudar o comportamento dos torcedores de cada clube profissional inglês e informar à polícia a identidade daqueles potencialmente mais perigosos. Realidade muito distante do Brasil.
De tudo o que nos acostumamos a presenciar nos estádios brasileiros, fica claro que não basta a boa vontade e as mudanças nas leis sem que haja a efetiva aplicação das penalidades e o rigor mais contundente na aplicação destas leis. Aqui no Brasil, temos sempre as máximas que são aplicadas em nosso cotidiano. A mais terrível delas, talvez, seja aquela que diz: “Existem leis que pegam e leis que não pegam”. Isso nos dá mostras do grau de impunidade e descrença nas autoridades, que nos transforma em hipócritas e irresponsáveis.
Voltando ao episódio do clássico, ficou para todos nós uma sensação de impunidade, que nos faz antever a repetição de atos iguais ou piores aos que aconteceram, sem que medidas rígidas e contundentes tenham sido tomadas. Transpareceu também que “os amigos do rei” sempre poderão contar com a impunidade e seguir em frente. Uns xingamentos em público e um puxão de orelha já resolvem para estes. Tratamos episódios de tentativas de homicídios como se fossem casos banais e com pouca importância. Uma reprimenda basta. Quem sabe uma semana sem poder usar o “videogame” resolva.
O Brasil trata os bandidos como bonzinhos. Será assim até o dia em que ele acabar matando alguém de nossa família. Mas talvez, para mudar pelo menos parte disto, o filho de um político importante precise ser atingido ou uma grande tragédia precise fazer o país parar para repensar um esporte que movimenta cerca de 2% do PIB mundial, mas que muitos acham sem importância. Porém, aí poderá ter sido tarde demais!
Os sinais para repensar o produto futebol foram dados, tomara não ser necessário comprar o cadeado após o portão ser arrombado.