Os Cazares do futebol são vários. Os Cazares da história do Atlético são muitos, de todas as cores e de muitas dores e dissabores
Max Pereira
Do Falo Galo, em Belo Horizonte
28/09/2019 – 07h19
Fiel à ideia da importância de se desenvolver uma analise sociológica do Atlético e, por meio dela, conhecer o melhor possível a instituição, a alma atleticana e, claro, a ímpar e esquizofrênica relação da torcida com o clube, este ensaio se propõe a falar mais especificamente de um perfil de jogadores que, a exemplo do equatoriano Cazares, puseram as suas carreiras em risco ou mesmo as frustraram de vez, em razão de seus comportamentos heterodoxos, em um processo autofágico que sempre contou com a omissão e o despreparo dos dirigentes.
Sei que o tema deste artigo é delicado, polêmico e que a tese que aqui defenderei vai desagradar a muitos. Porém, o objetivo é provocar a reflexão e tirar o leitor da sua zona de conforto sem, entretanto, sugerir nada em relação a quem quer que seja.
Desde que o futebol surgiu nessas terras tupiniquins os Cazares da vida vêm insistindo em praticar o esporte bretão. Na virada do século XIX para o século XX os homens de pele negra ou que tivessem traços de negritude no corpo tinham que se contentar em assistir, a uma distância recomendável e discreta, 22 branquelos desengonçados e, usando uma roupa estranha, correrem de um lado para o outro de um gramado, maltratando uma gorduchinha de couro cru e costuras grossas a quem chamavam de bola.
Um branquelo anônimo flagrou por acaso um “negrinho atrevido” fazendo, às escondidas, coisas mirabolantes com a tal bola e percebeu o talento ímpar e, até então insuspeito, dos antigos escravos e de seus descendentes. Mas, introduzi-los no esporte que era de elite não foi tarefa fácil.
Para que esses excluídos pudessem entrar em campo, passou-se a utilizar de um jeitinho torto, politicamente incorreto para dizer o mínimo: os negros tinham mãos, rostos e uma ou outra parte do corpo, que por ventura pudessem ficar expostas, pintados de branco, ludibriando assim a plateia, a arbitragem, os próprios adversários e, obviamente, contrariando a regra do jogo e os costumes da época que vedavam a prática do futebol aos homens de cor.
Ah! Naquela época os praticantes do futebol usavam trajes ingleses, o que incluía uma espécie de boné que facilitava o disfarce, já que os cabelos ficavam naturalmente encobertos.
O futebol foi durante muitos anos marcado por demonstrações de racismo e de muita intolerância. Muitos clubes, hoje tradicionais e grandes no futebol brasileiro, sequer admitiam negros em seus quadros de funcionários. Atletas e associados de cor, então, nem pensar.
A intolerância não era e nunca foi apenas no que tange a etnia ou a cor da pele. A orientação sexual fora do convencional também era punida com o ostracismo e fim da carreira. E mais: jogadores de personalidade forte ou de convicções políticas contrárias ao status quo também pagavam um alto preço. Hoje não é exatamente diferente.
Os Cazares, pretos e brancos, ao longo dos tempos tiveram suas carreiras marcadas por incompreensões, perseguições, injustiças e preconceitos. Ódio e intolerância sempre foram seus companheiros inseparáveis. Um verdadeiro apartheid que está na raiz da violência e da intolerância com que sempre foram tratados na história do país.
E também não é sem-razão que os Cazares do futebol escreveram as páginas mais marcantes e turbulentas de suas vidas de futebolistas ungidos no preto e no branco.
Os Cazares foram vários e tiveram muitos nomes. Cazares de perfis variados. Alguns deles, míticos e donos de um futebol raro, também eram dotados de uma beleza que incendiava os corações femininos, craques elegantes e temperamentais, viveram uma vida tão intensa quanto incomodaram a muita gente.
Craques que desafiaram a ciência e brilharam como nunca.
De modo geral, mulheres e bebida, se tornaram a marca indelével de vários craques geniais que marcaram época tanto pelo futebol diferenciado que praticaram, quanto pelas polêmicas que protagonizaram fora das quatro linhas.
Outros craques de primeira linha tiveram suas carreiras demarcadas por conflitos com a cartolagem e os treinadores de suas épocas, graças à sua forte personalidade e às posições políticas que defendiam.
A bola pune. Alguns Cazares da vida fracassaram com outras camisas e, um deles, por ironia do destino, teve uma segunda chance no Atlético. E a desperdiçou.
Não raro, muitos jogadores colecionam sucesso, fama e também drama, tragédia, descrédito, violência, sofrimento e doença, e muitos só conseguem paz quando a morte advém, um descanso para um corpo debilitado pelo álcool e pelos excessos.
Muitos, ao encerrar suas carreiras, absolutamente despreparados para a nova vida, mergulham no vício e vão da vida desregrada à indigência total.
Nunca um clube foi tão fértil para produzir os Cazares da bola como o Atlético. Cazares de todas as cores e de muitas dores e dissabores. Muitos de talento e qualidade inquestionáveis, outros nem tanto.
De A a B, os Cazares atleticanos são parte cármica da história atleticana.
Todos foram, em maior ou menor intensidade, hostilizados pela massa, alguns com extrema violência e alto grau de perversidade. E ainda que a rejeição e o não gostar tenham aparentemente razões distintas, a verdade é que todo o ódio despendido em relação a eles têm uma razão de fundo sociológica.
Sejam os salários que afrontam, seja o sucesso com as mulheres, seja a fama e o dinheiro invejados, o fato é que o desempenho em campo, muitas vezes inegavelmente irregular, quase nunca é a fonte verdadeira do ódio, da rejeição e da intolerância.
É muito visível o fato de que o ódio e a intolerância a Cazares, o inspirador desse ensaio, explodiram com a divulgação nas redes sociais de fotos do craque equatoriano acompanhado de mulheres brancas, bonitas e sensuais.
Testemunhei no Horto, antes mesmo que um jogo começasse, um torcedor atleticano proferindo impropérios contra o camisa 10 atleticano, todos de natureza racista e preconceituosa e alusivas às fotos que até hoje incendeiam os instintos mais sombrios de muitos.
E antes que tomem este ensaio como uma defesa do comportamento anômalo do craque, vou logo dizendo que Cazares, além de ser vítima dele mesmo, de sua falta de formação e base, é também subproduto de um sistema que, via de regra, opta quase sempre por punir e não prevenir o mal, por punir e não cuidar, por punir e não proteger, por punir e não preservar o homem e o talento.
Historicamente, o comando atleticano é omisso e inapetente, o clube é absolutamente frágil e inoperante para se blindar, proteger a si e a seus atletas.
Em um emaranhado de notícias e “notícias”, na era das fake news, o que é mentira repetida mil vezes torna-se verdade inquestionável.
Para muitos tudo o que é dito de ruim sobre quem não se gosta é aceito acriticamente como verdade irretorquível. A recíproca é verdadeira.
Não duvido que Cazares tenha saído da linha, mas me recuso a aceitar de forma acrítica tudo o que dizem dele. E, principalmente, me recuso a não tratá-lo como um ser humano que merece cuidados, ajuda e atenção, sem esquecer que ele é um patrimônio do clube e como tal tem que ser valorizado.
Enfim, questiono o tratamento dado ao jogador pela torcida e por grande parte da mídia e a condução que o comando atleticano vem dando ao caso e aos “problemas” gerados pelo atleta desde que chegou ao clube.
E escrevo problemas entre aspas, para chamar a atenção para a exploração sempre danosa da imprensa em relação a Cazares e também a outros jogadores atleticanos, quase sempre potencializando nocivamente os fatos.
Os Cazares são muitos e os seus carrascos são infinitos.
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Edição: Ruth Martins
Edição de imagem: André Cantini