Clube-empresa: armadilha ou solução?
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Por Max Pereira (@pretono46871088 @MaxGuaramax2012)
Na busca de uma resposta para essa pergunta-título fecho a trilogia iniciada com os artigos “NA PRÁTICA, A TEORIA É OUTRA…” e “ATLÉTICO: UMA REALIDADE EM CONTÍNUA TRANSFORMAÇÃO. CAMINHOS E DESAFIOS…”, publicados aqui no PRETO NO BRANCO.
Se tem algo que precisamos debater sobre os clubes brasileiros é a democratização da estrutura e ampliar a participação dos torcedores”, afirmou o jornalista e pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Irlan Simões, também organizador do livro “Clube empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol” (Editora Corner, 2020), segundo o qual o projeto de lei em tramitação no Senado Federal pode colocar os clubes nas mãos de grupos privados “inescrupulosos”.
E Simões acrescentou ainda: “É fácil manter essa atual estrutura com apenas 400 pessoas votando, mas ficaria difícil com 40 mil eleitores internos. Isso criaria um ambiente de fiscalização e cobrança, diferente do que temos atualmente. Por isso, Internacional, Grêmio e Bahia, que ampliaram essa participação, têm colhido bons resultados”. Não estaria aí a raiz do tabu em relação à participação do sócio torcedor atleticano em canais eletivos e decisórios? O que justificaria, então, a não criação de regras e mecanismos claros e estruturados para disciplinar essa participação?
No artigo “CONSTRUIR UMA IDENTIDADE VENCEDORA E CAMPEÃ É MISSÃO INDELEGÁVEL DO ATLETICANO”, também publicado aqui no Fala Galo em 23.9.2019, defendi a importância e a necessidade de se desenvolver uma análise organizacional e sociológica do Atlético e, por meio dela, conhecer o melhor possível a instituição, a alma atleticana e, por óbvio, a ímpar e esquizofrênica relação da torcida com o clube, com o objetivo de reinaugurar a relação torcedor/sócio e clube dentro de uma ótica moderna, ousada, diferenciada, proativa e profundamente participativa.
Um desafio ainda se impõe, o de fazer o atleticano canalizar esta paixão absurda e inigualável, este torcer contra o vento ímpar, para algo prático, sem correr o risco de esvazia-la, i.e., de a torcida perder a sua própria identidade. Será isso possível? Como um incorrigível otimista que sou acredito que sim. Clube e torcida têm, cada qual, uma tarefa a cumprir. E, considerando tudo o que está acontecendo atualmente com o futebol e o Atlético em particular, o momento de arrostar este desafio é agora.
Vale a pena repetir que, antes e além de qualquer outra coisa, é fundamental democratizar o clube, construir canais de participação e saber explorar de forma competente e proativa este gostinho de títulos importantes que o atleticano não degustava há tanto tempo e que a partir de 2013 passou a embalar os sonhos e a colorir o imaginário do galista apaixonado. Por isso, sou um eterno e contumaz defensor de que as torcidas participem intensa e diligentemente da vida política e na até mesmo da formulação das estratégias dos clubes e, óbvio, com filtros e regras claras e transparentes de participação e governança.
Sem nenhuma apologia à violência, sempre defendi que cobrar, criticar, protestar, se manifestar e reivindicar, são, além de um direito inalienável de cada um de nós, um salutar exercício de cidadania e, por excelência, um exercício político fundamental. Ou seja, quem cobra, protesta, critica, reivindica, se manifesta, está fazendo política e o homem é um animal político por excelência.
A política é também a arma ideal por natureza para a resolução de conflitos, divergências e diferenças. Política vem do grego “polis” que significa povo e, portanto, comporta todas as contradições e diferenças inerentes a este. E no futebol não é e nem poderia ser diferente. Assim, entendo que o direito do sócio torcedor atleticano, aquele que injeta dinheiro no clube, de reivindicar a sua participação efetiva na vida intestina do clube é legítimo e inalienável.
Nesse sentido, o PRETO NO BRANCO reafirma a sua disposição de ser um veículo de debate e reflexão. E se, ao que tudo indica, a transformação do Atlético em clube-empresa parece inevitável, é mister buscar responder qual deveria ser o papel do sócio torcedor nessa nova realidade, quais os cuidados que o glorioso tem que tomar para preservar a sua identidade e a sua essência e como o torcedor em geral enxerga esse novo Galo que está sendo gestado e pode contribuir pró-ativamente neste processo.
A legislação brasileira já prevê atualmente a possiblidade dos clubes brasileiros alterarem a sua constituição social e transformarem-se em clubes-empresas. A novidade nada alvissareira, entretanto, é o projeto de lei em tramitação no Senado Federal, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, eleito recentemente presidente daquela Casa, que cria uma nova estrutura societária para os clubes de futebol, a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que envolve um conjunto de regras específicas para o mercado do futebol.
No artigo “CLUBE-EMPRESA ‘É MAU NEGÓCIO’, MAS PROJETO GANHA FORÇA NO SENADO”, publicado 13.2.2021, Felipe Mascari, RBA – Rede Brasil Atual, defende a tese de que o PL do senador Rodrigo Pacheco, eleito recentemente presidente da Casa, mantém os problemas estruturais do futebol brasileiro.
E, amparado pelas avaliações que especialistas, como o já citado Irlan Simões e o consultor esportivo Amir Somoggi, diretor da Sports Value, fazem a respeito do referido projeto de lei, Mascari conclui que o tal PL, além de não combater os principais problemas do futebol brasileiro, como a sonegação e o endividamento dos clubes, não garante o fortalecimento do esporte e, nem tampouco, que o futebol brasileiro saia do atoleiro, tenha gestões modernas e seja uma economia pujante.
Mas, antes de ir além, é preciso entender como o futebol brasileiro chegou ao nível atual de sofisticação, complexidade e também de caos financeiro. É preciso conhecer a história e como, ao longo dos últimos tempos, interagiram, se movimentaram e se organizaram os diversos atores que compõem o sistema com graus diferenciados de poder e influência.
Criado há 30 anos para revolucionar o futebol brasileiro, o Clube dos 13, oficialmente União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro, foi uma organização brasileira formada em 11 de julho de 1987 para defender os interesses políticos e comerciais de 13 grandes clubes brasileiros.
O Clube dos Treze, que era um grito de independência destes clubes e um embrião para uma futura Liga de Clubes Profissionais, autônoma e independente, porém, não conseguiu chegar vivo aos dias atuais. A entidade, após romper com a CBF e organizar de forma pioneira a Copa União em 1987, viu sua vocação ir mudando ao longo do tempo e, por fim, se transformou em mera representante dos clubes na discussão de contratos, em particular, os de transmissões televisivas.
Uma cartada de mestre da dupla Rede Globo/CBF jogou uma pá de cal no Clube dos Treze fazendo a entidade sucumbir de vez em 2011, ao produzir um racha insanável na negociação dos direitos de transmissão dos certames nacionais de 2012 a 2014 para a TV. E, um a um, os clubes foram abandonando a organização, uma debandada sem volta. Foi o fim do Clube dos Treze. Do ponto de vista jurídico, porém, não foi bem assim que aconteceu.
Implodido há alguns anos o Clube dos 13 continuou existindo, com o CNPJ ativo na Justiça, mesmo sem ter nenhum representante, sede e patrimônio. Foi o que constatou a reportagem do ESPN.COM.BR em 2017, que investigou uma dívida milionária da organização para com a Franco Associados, empresa de Jaime Franco, ex-diretor de marketing da própria entidade.
Franco deixou a organização alguns anos antes que este fosse esvaziado, mas sua empresa não recebeu o que lhe era devido. O empresário recorreu à Justiça e ganhou a pendenga. Porém, como o Clube dos 13 não tem mais representantes legais e nem patrimônio, poderia recair sobre os clubes que eram membros, o Atlético entre eles, a responsabilidade pela quitação do débito. De lá pra cá nada mais se falou sobe isso.
Nesse cenário confuso e turbulento configurado com a implosão do Clube dos Treze em meados de 2011, o futebol brasileiro passou, a partir de então, a ter uma fisionomia moldada pela realidade configurada pelos contratos de transmissão televisiva que os clubes pactuaram individualmente com a emissora detentora de tais direitos.
Uma instigante e profundamente elucidativa monografia de Danilo F. Christofoletti nos conduz a entender os caminhos que levaram à construção do monopólio da Rede Globo de Televisão sobre o Campeonato Brasileiro de futebol, que, a partir da ruptura entre as agremiações e o Clube dos 13, que as representava, mudou o cenário esportivo brasileiro, gerando maiores receitas para uns poucos clubes e uma diferença brutal na arrecadação entre estes e os demais, a grande maioria. E, vai permitir, também, compreender, porque e como o Atlético foi parar no terceiro escalão do ranking das arrecadações televisas e porque o clube continua correndo o risco de despencar mais e mais, ainda que este monopólio pareça estar com os dias contados.
Essa monografia, publicada há alguns anos, e de leitura obrigatória para quem quiser entender como funciona atualmente o futebol brasileiro, é um estudo de caso que se reveste de muita importância tendo em vista que o futebol é, sem dúvida alguma, o maior fenômeno esportivo popular brasileiro, além de ser uma referência cultural no país.
Uma informação importante e muito elucidativa que esse trabalho nos permite conhecer, por exemplo, é que o esporte movimenta mais de uma dezena de bilhões de reais por ano, e que mais de meio milhão de pessoas vivem hoje do futebol.
Aqui é inevitável relembrar que neste universo multibilionário interagem investidores, parceiros, patrocinadores, fornecedores de materiais esportivos e equipamentos como o VAR, imprensa, empresas de comunicação, de marketing, de análise de potencial de mercado e de gestão esportiva, além, é claro, do agente de futebol, figura hoje, para o bem e para o mal, enraizada no sistema, capaz de frustrar, concretizar e desviar negócios com um simples estalar de dedos. Ética é, às vezes, mera peça de ficção.
Não à toa, e sem surpresa, a maioria absoluta dos clubes brasileiros é hoje deficitária, mal gerida e mera coadjuvante nas competições que disputa. E mesmo entre os chamados grandes e os poucos que efetivamente disputam títulos e saem vencedores a situação financeiro-administrativa não é menos confortável e tranquila.
Em ranking elaborado pela consultoria Sports Value, que levou em conta dados divulgados nos balanços financeiros anuais. Atlético superou o Palmeiras e fechou 2020 como o segundo clube que mais investiu em jogadores no Brasil, atrás apenas do Flamengo. Segundo o Superesportes, o estudo mostra que o Atlético investiu R$ 290,3 milhões, contra R$ 391,5 milhões do Flamengo. Terceiro colocado, o Palmeiras gastou R$ 279,7 milhões. Completam o top 5 Corinthians e São Paulo. E nestes valores estariam incluídos todo o custo dispendido na montagem do elenco até o fim de 2020.
Paralelamente, os 20 maiores clubes do País tiveram queda nas receitas de 19,5% e juntos têm déficits que somam R$ 1,03 bilhão, conforme apurou o Estadão e, pela primeira vez, as dívidas passaram de R$ 10 bilhões, reflexo das perdas que os clubes tiveram nesse período de pandemia. Perdas financeiras principalmente sobre direitos de TV, bilheteria, sócios, transferências de jogadores e patrocínios. Mais uma vez os dados são da Sport Value.
Não à toa, o rei dos paradoxos, também se tornou, senão aquele que possui o maior passivo entre os clubes do país, um dos mais endividados do futebol brasileiro. Existem controvérsias a este respeito, mas, oficialmente o Atlético é o primeiro clube a atingir a marca de 1 bilhão e duzentos milhões em dívidas, superando o rival azul, o Corinthians e o Botafogo, clubes que, nesta ordem, vêm a seguir neste fatídico ranking.
Mas, seria a mudança de sua constituição societária, transformando-os em clubes empresas a solução para todos os seus problemas e, principalmente, garantia de uma governança saudável e de sucesso? Curto e grosso, não. Mesmo porque o pulo do gato está na qualidade da gestão.
“Muitos clubes precisam de choque de gestão, controle e regulação efetiva de suas administrações, a fim de serem saudáveis novamente. Nenhuma lei de clube-empresa alterará esse cenário”, complementa Amir Somoggi, sócio-diretor da Sports Value, em relatório publicado pela consultoria, numa referência ao projeto de lei que prevê a SAF, Sociedade Anônima de Futebol. Formato empresarial para gestão dos clubes, que deve ser votado ainda este mês no Senado.
Ainda segundo o Estadão, as dívidas fiscais dos clubes, por exemplo, chegaram a R$ 2,7 bilhões e representam 26% do endividamento total. Antes da pandemia, esse porcentual era de 38%, o que mostra que os clubes, a cada ano, aumentam mais suas dívidas operacionais relacionadas à contratação de jogadores, empréstimos e passivos trabalhistas, problemas que não serão resolvidas com uma nova legislação. “O mercado brasileiro de futebol precisa encontrar um modelo mais enxuto e menos alavancado de gestão. Com a pandemia, boa parte dos clubes perdeu o controle financeiro de suas operações”, aponta Somoggi.
Equilíbrio nos gastos e criatividade para achar novas receitas. E nada disso se obtém com a legislação em tramitação no senado Federal.
Segundo Felipe Massari, a SAF, diferentemente de uma sociedade anônima comum, cria debêntures específicas, ou seja, títulos de dívida que o clube-empresa poderia emitir no mercado financeiro para captar investimentos com juros mais baixos. A sociedade do clube-empresa terá o capital dividido em ações e a responsabilidade dos acionistas, se a opção for pela sociedade de capital aberto, será limitada às ações adquiridas. O PL abre a possibilidade de pessoas físicas, empresas e fundos de investimentos controlarem os times.
O projeto prevê, também, que os clubes poderão se converter em SAFs, ou criar uma SAF como subsidiária, com os ativos relacionados ao futebol. O PL ainda propõe um regime tributário facultativo, de natureza transitória, denominado “Re-Fut”, com o recolhimento único de 5% da receita mensal, apurada pelo regime de caixa. Ou seja, se de um lado o projeto oferece todas as garantias ao investidor, de outro não se preocupa no como o time pode fazer parte disso sem perder o controle da entidade, i.e., de sua identidade e de sua essência.
Quando um clube se transforma em empresa, ele fica suscetível ao que ocorre com todo tipo de empresa: a falência. E, claro, aos interesses e aos humores do dono. Na Itália foi o que aconteceu, times fecharam as portas, foram refundados com cores e emblema parecidos e voltaram. O que ocorreria no Brasil?
O projeto em tela tem suas fundamentações teóricas equivocadas, pois se inspira nas experiências mercadológicas no futebol espanhol e português, tidas como “exemplos bem-sucedidos”, o que não corresponde à realidade. Vários são os cases de fracasso graças às más gestões, às oscilações de mercado e à exploração do clube para fins políticos. É bom lembrar que resultados financeiros e esportivos não andam necessariamente juntos. Ao se tornar empresa e jogar no mercado de capital aberto, o clube pode enfrentar problemas para manter suas ações em alta.
Somoggi afirma também que o projeto da SAF foi “escrito pelo capital, pelos donos dos interesses econômicos”, sem a participação da sociedade. “Aquilo está sendo legislado para dar certo para um fundo de investimento, empresas, não é para a sobrevivência deste ou daquele clube”.
E o que pode e deve fazer o torcedor, sócio ou não, a respeito de tudo isso? Recorro mais uma vez ao Estadão, para trazer o que diz sobre isso Renê Salviano, executivo com mais de 20 anos de experiência em novos negócios do esporte. Diz ele: “A saída é seriedade na comunicação com o torcedor. Poderia aqui citar investimento em programas de sócios-torcedores ou em conteúdo para redes sociais, canal próprio. Em tempos de pandemia isso cresceu avassaladoramente. Para isso acontecer, no entanto, é preciso uma gestão séria e transparente”.
Outro ponto importante, segundo Salviano, é ouvir e conhecer o torcedor. “Passando por estas etapas, os clubes saberão se preparar para a captação de patrocínios e novos negócios. Uma grande e importante dica é ouvir o torcedor. Deles virão as melhores ideias e conexões”.
Outro PL, 5.082/2016, de autoria deputado federal Pedro Paulo (DEM-RJ), este em tramitação na Câmara Federal, trata de tema similar e busca, tão somente, um novo meio para refinanciar as dívidas dos clubes com o erário público, sem o objetivo mudar a gestão das equipes.
Se a transformação do Atlético em clube-empresa vai ser uma solução ou uma armadilha, vai depender do que for feito daqui para frente pelo clube e da qualidade da vigilância e da participação de sua torcida, em particular de seu sócio torcedor.