Mata-mata x Pontos corridos: o debate sem fim…

 

 

Prof Denílson Rocha 
16/04/2020 – 12h20
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A pandemia do COVID-19 interrompeu a maior parte das competições esportivas mundo afora – incrivelmente, ainda há torneios em andamento – e ninguém consegue ter certeza de quando voltaremos a ter eventos. No futebol, há algumas ligas convocando seus atletas para início de treinamentos, mas a maioria ainda continua sem precisão de quando poderão retomar as atividades. Considerando que ninguém consegue ter certeza de quanto tempo ainda conviveremos com a pandemia, o calendário esportivo ainda traz uma grande dúvida e já recomeçam os debates de usar do “mata-mata” como solução temporária e, para alguns, vira o argumento para reforçar seu desejo deste modelo de competição. E renasce a discussão entre os defensores dos campeonatos (“pontos corridos”) versus as copas (“mata-mata”).

O jornalista Rica Perrone fez um vídeo apresentando seus argumentos em prol do “mata-mata” – disponível em (veja aqui). Para abordar cada um dos pontos tratados, seria necessário um texto bastante longo. Em resumo, jornalista mostra como os esportes americanos, com seus playoffs, são referência em entretenimento e tem como principal foco a “emoção” proporcionada ao torcedor – o que seria o principal objetivo do esporte. Segundo ele, esporte deve premiar o “brilhantismo”, que aparece nos momentos decisivos, e não a “regularidade”. O jornalista argumenta, ainda, que o principal ponto a favor dos “pontos corridos” seria a “justiça”, que, segundo ele, é inexistente uma vez que os clubes, por diversas vezes, priorizam outras competições e usam de times reservas. Um ponto bastante relevante tratado pelo jornalista é a diferença de cultura entre torcedores americanos e europeus e como adotamos a cultura europeia para defender os “pontos corridos”.

 

Antes de qualquer coisa, o que historicamente definiu a estrutura de torneios como “copas” foi a distribuição territorial. Em um país tão extenso como o Brasil e com tamanha dificuldade para as viagens, foi mais simples a adoção de torneios em formato “mata-mata”. As dificuldades para viagens eram (e ainda são) tão grandes que o primeiro torneio interestadual relevante foi a “Copa dos Campeões”, em 1937, vencida pelo Atlético. E somente em 1971 foi possível a realização de um torneio com participação de representantes de todos os estados do Brasil. Por isso o campeonato de 1971, também vencido pelo Galo, é tratado como primeiro campeonato brasileiro – ainda que alguns títulos de tenham sido distribuídos na canetada. O início dos “pontos corridos” em 2003 só foi possível porque houve evolução no transporte aéreo e mais dinheiro para pagar por este tipo de transporte.

Como comparação, os torneios nacionais europeus já utilizam do formato de “pontos corridos” há várias décadas. Em uma realidade bastante distinta, os clubes do “Velho Mundo” contam com sistemas de transporte bastante eficientes e o deslocamento dentro dos países é mais rápido e simples do que é no Brasil. Na Alemanha, por exemplo, uma viagem entre Munique (sul) e Hamburgo (norte) dura, aproximadamente, 1:15h por avião ou 6h de carro. Já no Brasil, uma viagem entre Rio Branco (norte) e Porto Alegre (sul) dura por volta de 7h por avião ou mais de 50h por via terrestre. Mesmo com a evolução nos meios de transporte, ainda é longe, caro e desgastante manter um campeonato com deslocamentos tão extensos. E mesmo na Europa, observamos que o principal torneio na atualidade, a Champions League, usa o formato de Copa.

Dos campeonatos nacionais europeus, todos em formato de “pontos corridos”, somente a Premier League, na Inglaterra, mantém força. Alemanha, França, Itália não conseguem manter a atratividade pois passaram a ter domínio de uma única equipe. Porém, isso não significa uma “vitória” dos “mata-mata”: os principais clubes europeus discutem a formação de uma liga continental com campeonato em “pontos corridos” e jogos nos finais de semana, “empurrando” os campeonatos nacionais para o meio da semana, perdendo a relevância. Ou seja, ainda que o principal torneio atualmente seja uma copa, a tendência é de adoção do formato de campeonato.

O segundo ponto relevante é a cultura em cada região. E o que atrai o torcedor em cada lugar muda bastante! O americano vai ao evento esportivo pelo matchday. Ele chega cedo, participa de diversas atividades, consome produtos, vive um dia em que o jogo é apenas parte de todo o evento. O europeu vai ao evento esportivo pelo jogo. Ele valoriza o embate, os atletas e a história dos clubes. Essa cultura explica jogos, mesmo de clubes pequenos e que não são favoritos aos títulos, sempre com bastante público e estádios cheios. Enquanto isso, no Brasil, a maioria do público torce pela vitória. Os clubes nunca tiveram iniciativas para o matchday e são poucos os torcedores que, verdadeiramente, se identificam e abraçam o time “na alegria ou na tristeza”. Por aqui, se o clube não está bem no campeonato, a maior parte dos torcedores deixa de ir aos estádios. Como resultado, as médias de público são historicamente baixas – e não adianta usar as decisões dos anos 70 ou 80 como referência porque, mesmo com finais para mais de 100 mil torcedores, a média de público nos torneios jamais passou de 20 mil torcedores pagantes. Em contrapartida, o público lota os estádios quando o time está bem, seja no “mata-mata”, seja nos “pontos corridos”. Basta analisar a média de público dos últimos vencedores dos Campeonatos Brasileiros. Para o Flamengo, em 2019, seria melhor uma final com o Maracanã lotado ou 19 jogos com o Maracanã também bastante cheio? Enfim, os clubes brasileiros precisam de um trabalho bastante difícil de estímulo ao torcedor para comparecer aos estádios – e nosso contexto é bem complicado com dificuldades de transporte, insegurança e, agora, crise econômica e coronavírus.

De tudo, o que mais importa é a visão de negócio. Nesse ponto, os americanos são imbatíveis até mesmo para valorizar o que nem é tudo se que propagandeia – por exemplo, chamam a decisão nacional do torneio de baseboll de “Série Mundial”. Mas, com exceção dos americanos e dos mais fanáticos, quem assiste as “temporadas regulares” da NHL ou MLB? Mesmo os que vão as arenas, é normal que o americano fique nos bares e restaurantes assistindo ao jogo e só vá para seu lugar na etapa final.

Existe um fator bastante diferente nos torneios americanos: eles compreenderam que o que gera atração, visibilidade e dinheiro para o negócio é o torneio. Não é um clube, não é uma pessoa. O mais importante é o torneio em si. Tanto que as ligas americanas têm donos, que definem quem participa ou não daquele torneio e até mesmo a cidade em que cada clube ficará. Não existe rebaixamento. O pensamento, sempre, é de manter o torneio atraente.

Para manter a atração, adotaram formas para maior equilíbrio nas competições. É raro termos uma hegemonia, um favorito que se coloque muito acima dos demais. Para garantir a competitividade, são adotadas regras bastante financeiras bastante rígidas – com uma diferença fundamental em relação aos europeus: o principal objetivo das regras de fair play é garantir que exista competitividade entre os participantes. O fair play promove o equilíbrio entre as equipes, dificultando bastante que um clube tenha receitas ou despesas superiores aos demais. Não é só o que arrecada. É, especialmente, como gasta.

Um novo fator pode alterar a dinâmica dos esportes americanos: recentemente a liga de basquete, a NBA, passou a ter patrocínios nos uniformes. Ainda é recente. Ainda tem pouca visibilidade. Ainda não é uma receita essencial. Também foi assim no futebol mundo afora, que sobreviveu por longo tempo sem patrocínios e hoje temos verdadeiros abadás – dos grandes clubes, quem resistiu por mais tempo foi o Barcelona, mas também acabou cedendo. Aos poucos, também nos esportes americanos, os patrocinadores vão ganhar importância e exigir mais visibilidade. Primeiro, nos uniformes. Depois, buscando competições que os coloque em evidência durante todo o ano. E aí, ficar fora dos playoffs seria uma tragédia.

E a NFL, o Superbowl? É o maior evento esportivo do mundo e vai ganhando espaço. Aos poucos vai se expandindo, com jogos na Inglaterra, no México e já foi avaliado, inclusive, no Brasil. Vai continuar com “mata-mata” por muito tempo porque as dificuldades de logística permanecem e as receitas de transmissão e venda de produtos ainda estão em expansão mundo afora.

Outro ponto importante nos esportes americanos está no calendário. Observem que as diversas ligas esportivas têm uma coordenação para que não exista concorrência entre as datas decisivas de cada uma delas. Enquanto isso, convivemos, todos os anos, com indefinições e mudanças nos principais torneios. O Campeonato Brasileiro sequer consegue respeitas as “datas FIFA”, que são divulgadas com anos de antecedência.

Estudo recentemente divulgado pela Pluri Consultoria (veja aqui)  mostra que “a taxa de utilização média do calendário do futebol brasileiro em 2019 foi de 30% para os 645 clubes que disputaram, ao menos, uma competição profissional na temporada. Significa que, em média, os clubes brasileiros passaram 70% de seu período de atividade sem disputar uma única partida”. Segundo o estudo, 288 equipes brasileiras estiveram, em 2019, disputando competições por, no máximo, 2 meses! Em uma conta bastante simples, se considerar 22 atletas e comissão técnica modesta (técnico, auxiliar, roupeiro, preparador físico e médico), são quase 8 mil profissionais do esporte desempregados por 10 meses ao ano. O estudo acaba com o mito de que há jogos em excesso no Brasil e deixa claro que há, na verdade, desequilíbrio – e as copas são responsáveis por parte deste desequilíbrio pois uma eliminação precoce reduz o número de jogos no ano e pode inviabilizar o clube esportivamente e financeiramente. Basta avaliar o ano atual ano do Galo, com eliminações na Copa do Brasil e na Copa Sul Americana.

 

O principal atrativo para os torneios por pontos corridos é a visão de negócio! Ocupa espaço nas transmissões na TV ou streaming, divulga marcas de patrocinadores, estimula a venda de produtos e serviços, gera empregos… a cadeia produtiva do futebol envolve diversos outros setores – transporte, alimentação, hospedagem, vestuário, saúde, mídia, segurança… É muito dinheiro em jogo e quanto mais tempo de atividade, mais dinheiro sendo movimentado.

Mas e a emoção? Pergunte aos torcedores dos clubes que venceram os últimos campeonatos brasileiros qual emoção sentiram. Qual a emoção de escapar de um rebaixamento? Qual a emoção de conquistar do torcedor do Fortaleza, que conquistou uma vaga em competição internacional pela primeira vez em sua história? Pergunte ao torcedor do rival qual a emoção ao vencer em 2003. Pergunte a qualquer Atleticano qual será a emoção ao voltar a vencer o Brasileirão.

E a justiça? Erros de arbitragem podem ocorrer em qualquer jogo. Mas qual a emoção do torcedor rival quando mudaram as regras do torneio e a final do Brasileiro foi levada para outro estádio? Qual a justiça em adiar o julgamento do rei Reinaldo para tirá-lo da decisão da final de 1977?         Qual sentimento de injustiça vivemos em 1980, 1981, 1999, 2001… O Atleticano foi inúmeras vezes prejudicado por situações que iam muito além do erro da arbitragem. Vivemos muitas situações que vão além do erro de arbitragem e mostravam a manipulação de resultados. Quantos títulos brasileiros teríamos se fossem “pontos corridos” desde 1971? É mais difícil a manipulação nos pontos corridos. Essa é a noção de justiça tão apregoada.

Mas quando os jogadores são poupados? Não cria um desequilíbrio no campeonato e uma injustiça? Em partes, sim. Afinal, você espera que os melhores estejam em todos os jogos. Porém, não ter algum atleta é comum em qualquer jogo ou torneio. Lesões ou suspenções acontecem e isso não deixa o torneio injusto. Os casos de jogadores poupados somente poderão ser alterados quando os torneios forem percebidos com o valor que realmente tem: o clube poupa no Campeonato Brasileiro porque a Copa do Brasil ou a Copa Libertadores são mais atraentes financeiramente! Quer mudar essa relação? Simples… é reduzir o número de vagas para clubes brasileiros na Copa Libertadores. Com menos clubes na disputa paralela, mais atenção ao Brasileirão. Quanto à Copa do Brasil? As copas nacionais europeias não dão vaga à Champion League. No máximo, uma vaga à Europa League. Então, que a Copa do Brasil dê vaga à Copa Sul Americana. Só! E a premiação em dinheiro também é desequilibrada… A premiação para Copa do Brasil é exagerada em comparação com os prêmios do Campeonato Brasileiro. Assim, é natural que os clubes deixem o Brasileirão de lado.

É preciso compreender que campeonatos ou copas não são excludentes. É possível ter torneios com diversos formatos durante o ano inteiro. Essa é a principal premissa: é NECESSÁRIO e ESSENCIAL manter as atividades dos clubes durante o ano inteiro. Somente assim é possível manter atratividade para transmissão (TV e streaming) e torcedores, e visibilidade para os patrocinadores. O debate ainda vai longe, mas a pandemia mostra para todos que é péssimo não ter competições: o clube perde, o patrocinador perde, os atletas perdem, o torcedor perde. Independente do formato, quando o coronavírus permitir, é preciso colocar os times em campo.