Deus e o Diabo nas terras da arrumação atleticana, 2019 foi assim!
Max Pereira
Do Fala Galo, em Belo Horizonte
11/12/2019 – 10h
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Com as bênçãos do grande Glauber Rocha, o Atlético protagonizou nessa temporada a versão do século XXI da obra prima do saudoso cineasta baiano “Deus e o diabo na terra do sol”.
O filme atleticano tem a direção e o roteiro de Sette Câmara e é estrelado por mil e um atores, dentre eles, muitos canastrões. Muitos deles, ocultos nos bastidores, merecem o Oscar pelos grandes vilões que encarnaram.
O Galo, ora foi aos céus e experimentou bicar as estrelas, ora chafurdou na lama e, por pouco, se atola de vez no Brasileirão mais diferente da história dessa competição. O Atlético ora viu Deus, ora andou de braços dados com o diabo.
Arrumação, no sentido formal do termo, é a ação ou resultado de arrumar, ou ainda, o sítio ou local onde se arruma algo. Porém, no sentido informal da palavra, arrumação é uma situação ou circunstância esquisita, engraçada, exótica ou estranha.
“Olha a arrumação desse menino”, dizia minha velha avó, “ele tá comendo banana com refrigerante”
Por diversas vezes nesse ano, o Atlético comeu banana com refrigerante e até mesmo misturou doce de leite com feijão, prato prá lá de estranho no gosto e mais do que improvável no cardápio do mineiro.
Arrumação é também o nome daquele cantinho tradicional da TV mineira onde o grande Saulo Laranjeira faz desfilar o talento e as coisas de Minas.
Mineiro gosta de arrumação bem feita mas o que o Atlético arrumou, ora no Horto, ora no Mineirão, ora nas terras dos adversários, deixou bastante a desejar, evidenciando aquele velho e surrado diagnóstico: falta de planejamento, comando e organização, graças a um modelo de gestão esgotado.
Houve momentos em que o Galo teve grandes atuações, quando jogou com intensidade e inteligência, dominou a partida e mereceu os pontos que conquistou, alguns muito valorizados em razão do que o adversário exigiu e do que o Atlético produziu para superá-lo.
Também aconteceram aqueles momentos em que Cazares bailou e que Jair mostrou um talento insuspeito.
Houve jogos em que o Glorioso venceu que, porém, poderiam ter tido um desenho e um desfecho muito diferentes, se as sombras tivessem ofuscado a luz. Embates que já seriam intensos e tensos, disputados palmo a palmo, tiveram, por vezes, um tempero diferente, estranho, pesado, sombrio.
Derrotas improváveis, outras doídas fizeram parte deste 2019 que muitos querem esquecer. Eliminações na Libertadores, na Copa do Brasil e na Sul-Americana compuseram uma temporada irregular e repleta de erros e escolhas equivocadas e que começou com a perda do título mineiro em uma final controversa, na qual o VAR foi a grande estrela.
Três treinadores ditaram estratégias e nenhum deles foi unanimidade. Levir Culpi, que iniciou a temporada, Rodrigo Santana, que esteve à frente do time atleticano a maior parte do ano, e Vagner Mancini, que a encerra, são treinadores de características diferentes, o que, por si só, já é fator de descontinuidade.
Fiéis às estratégias esboçadas pelos seus treinadores, os jogadores alvinegros até que buscaram se impor aos trancos e barrancos aos adversários. Porém, nem sempre querer é poder.
Muitas vezes imaginava-se que determinado jogo seria apenas um duelo tático, permeado de insights técnicos e de escapadas eventuais e/ou pontuais. Engano puro.
O futebol de hoje é cada vez mais marcado pelo uso de uma arma muitas vezes letal: a força mental. Alguns times aprenderam a usá-la de forma inteligente e ferina. Algumas vezes o Atlético conseguiu fazer o feitiço virar contra o feiticeiro, utilizando essa arma com muita eficiência. Outras vezes foi irritante e preocupantemente impotente.
2019 se caracterizou por problemas extracampo e crises, ora plantadas de fora para dentro, ora criadas nos interiores do próprio clube, graças à incúria de seus dirigentes, às idiossincrasias de Levir e à inexperiência e a insegurança naturais de Rodrigo Santana. Mancini, apesar de algumas experiências infelizes que levaram o Atlético a tropeçar, é mais vítima do que agente da tragédia atleticana. Chegou no apagar das luzes da temporada, pegou o barco a deriva e tentou fazer o que sabia e o que não sabia.
Além disso, os casos Cazares, cercados de verdades e de “verdades”, os recorrentes ataques ao vestiário atleticano, os insolúveis problemas financeiros do clube, a má gestão, os constantes atrasos dos salários e demais direitos dos atletas, a cizânia política interna na base de sustentação do atual presidente, a chegada de Rui Costa e Chávare em meio aos abalos sísmicos nas terras atleticanas, com clara tentativa de mudança de rota no trato do futebol com resultados ainda incipientes e dúbios, o noticiário muitas vezes perverso da mídia convencional, a incapacidade crônica do Atlético de se blindar e aos seus jogadores, as escolhas erradas, o mal planejamento do elenco, a tensão interna, muitas vezes inflada artificial e intencionalmente, seja por agentes internos ou externos, e a cobrança raivosa, irracional e extremamente passional de grande parte da massa, se constituíram, em linhas gerais, nos fantasmas que assombraram o Atlético nessa temporada.
Muitas vezes incompreendido, defendi a tese de que era até natural o time sucumbir, jogar mal e colecionar fracassos, tamanhos os problemas que haviam no ambiente interno do clube e o entorno dos jogos.
Os reflexos disso tudo dentro das quatro linhas se tornaram inevitáveis e fáceis de serem percebidos por qualquer um que se dispusesse a analisar os jogos do Atlético com um mínimo olhar crítico.
Independentemente do treinador, do momento e de sua planta tática, o Atlético várias vezes se arrastou em campo, impotente diante do desafio recorrente de fazer, por exemplo, a sua linha de meias se aproximar de seu centroavante.
Movimentação, flutuação, transição, profundidade, marcação forte e eficiente, recomposição, cobertura, além de fortuitas penetrações dos volantes, são o repertório de times bem treinados e equilibrados tática e emocionalmente, tudo o que o Atlético não foi em 2019.
Um dos pecados capitais do time atleticano foram os recorrentes passes errados, frutos de uma ansiedade plenamente justificada, do emocional abalado e das dificuldades táticas exibidas. Esses fatores podem também, em certa medida, explicar a profusão de gols desperdiçados, baldadas as assistências de extrema qualidade de Cazares.
Houve virtudes e, uma delas, talvez a principal, residiu na capacidade do time exorcizar os demônios cultivados, o que inclusive os permitiu em vários jogos superar fatídicas arbitragens e situações amplamente desfavoráveis, mantendo o foco, o equilíbrio e a intensidade, embora visivelmente bastante irritados e tensos com determinadas situações.
Algumas vezes nessa temporada o time vibrou e se entregou de forma homogênea, ninguém destoou e, cada qual nos estritos limites de seu potencial técnico, físico e mental foi fundamental para que o Atlético jogasse o que jogou e obtivesse o resultado que conquistou.
Muitos criticam e outros exaltam a dependência do time em relação a Cazares. Particularmente, me exulto com essa “deficiência”. É que o equatoriano foi fundamental para que o ano não terminasse com um desastre de proporções imensuráveis e se houve algo de lúdico, de mágico, de beleza ímpar no futebol atleticano, foi ele quem nos proporcionou.
Tem gente também que percebeu a excelência e a importância do futebol de Jair para o time. Não foi difícil perceber que, privado de contar com o volante em vários jogos graças a uma contusão muscular recidiva, o time se ressentiu bastante, seja porque as opções disponíveis, por suas características, não podiam oferecer o mesmo que ele em termos táticos, seja porque não estavam bem fisica e emocionalmente.
Nessa sua frenética gangorra, o Atlético, entre o céu e o inferno, teve várias de suas atuações marcadas por um início irregular e catatônico de seus jogos e, por vezes, também no início dos segundos tempos, para depois de algum tempo de puro horror, conseguir se equilibrar e passar até a dominar os seus adversários com facilidade insuspeita.
Mas muitas vezes superior inconteste, o time atleticano só não saiu vencedor graças aos maus espíritos que insistiam em lançar maus fluidos nas terras da arrumação atleticana. No Horto então eles assombraram como nunca.
O mau planejamento do elenco, associado a contusões intempestivas e ao mau momento pessoal de alguns atletas, expôs claramente as limitações técnicas deste ou daquele jogador e o despreparo emocional e mental de vários outros. Muitos dizem que foi o contrário. Importa pouco, se o Atlético não utilizar 2019 para planejar 2020.
E por falar em contusões, é preciso lembrar e questionar o número preocupante de lesões, em especial musculares, ocorridas durante os treinamentos e o mau condicionamento de vários atletas, ora ostentando barriguinhas, ora sustentando um indisfarçável sobrepeso. Com a palavra o departamento médico, a fisiologia e a preparação física do clube.
Não se pode esquecer também que vários garotos egressos da base e outros atletas vindos de fora têm sido, ao longo dos tempos, lançados na equipe titular de forma temerária, precipitada e fora de suas características e zonas de conforto, vez que a falta de planejamento de elenco e de temporada sempre atropelou os seus períodos de adaptação, aclimatação e condicionamento físico. 2019 não foi diferente.
As más atuações desses jogadores, quase sempre decorrentes dos desacertos do comando e das experiências equivocadas dos treinadores, acabam acarretando sobre eles ódio e intolerância por parte de segmentos significativos da torcida. Geralmente, o Atlético acaba perdendo o investimento feito porque muitos não conseguem dar a volta por cima.
O ano foi também de experiências ousadas, ora temerárias e injustificadas, ora interessantes. De qualquer maneira, nenhuma delas, positivas ou negativas, me pareceu treinada o suficiente e por vezes o jogador encarregado da novidade também não me pareceu, por suas características, o mais indicado para exercer a função a ele delegada.
Desde a insistência cruel e descabida de Levir com Elias na linha de meias pela beirada do campo no lado esquerdo, passando por Nathan, jogando de primeiro volante por determinação de Rodrigo Santana, e pela experiência de Vagner Mancini de jogar com um falso 9, o Atlético dançou vários ritmos, ora desafinado, ora um samba de uma nota só.
Se Elias, absolutamente fora de sua zona de conforto e em razão de suas características físico-atléticas e de jogo, jamais poderia se dar bem naquela faixa de campo e naquela função determinada por Levir, outras experiências, se bem trabalhadas, poderiam trazer ótimos resultados.
Tirar um zagueiro, por exemplo, e colocar um centroavante em seu lugar, poderia significar aos olhos de um observador incauto que o time iria para o tudo ou nada se expondo perigosamente. Ledo engano, nem sempre o que parece é. O que muitas vezes parece temerário, revitaliza o time e o mantém intenso, dinâmico e equilibrado.
No cassino da bola, o prêmio pela ousadia pela determinação e pela fé vem por vezes e, não raro, traduzido por aquele gol sofrido, ora produto do futebol coletivo, ora da insistência de quem nunca desistiu, ora materializado no correr atrás daquela bola que estava saindo pela linha de fundo e com ela a esperança da Massa que nunca deixou de acreditar.
Deus, vestido de preto e branco, e o diabo, muitas vezes vestido, não sem coincidência, de azul, cor dos uniformes mais usados por quem deveria arbitrar e não praticar o arbítrio, duelaram durante esse intenso 2019, nas terras da arrumação atleticana, molhadas com o suor dos anjos guerreiros alvinegros que fizeram da bola o troféu abençoado.
Duas curiosidades: mesmo com toda a irregularidade e entre altos e talvez mais baixos, o Atlético conseguiu nesse ano um percentual de aproveitamento no Horto de mais ou menos 85% e 2019 também foi o ano em que o Galo mais marcou gols no Mineirão, desde a reinauguração do Gigante da Pampulha em 2013.
Incrível como as coisas positivas do Glorioso ficam escondidas e as negativas são potencializadas. Isso tem um porquê que precisa ser enfrentado por quem se impõe a missão de conduzir os destinos do clube.
Houveram jogos em que o Atlético fez dois gols e só um valeu, mas foi o suficiente. Fez-se a justiça e justiça é coisa divina.
Mas atenção: a bola pune e o Atlético foi punido inúmeras vezes em sua história graças às escolhas equivocadas de seus dirigentes e treinadores. 2019 ainda está muito vivo em nossas memórias para provar isso.
Pau que nasce torto, morre torto. O que começou mal dificilmente termina bem. O último jogo do Atlético não poderia ser diferente.
Em grave crise financeira o Atlético, ao enviar para Porto Alegre uma equipe reserva sem nenhuma justificativa aceitável, pareceu desprezar a possibilidade de abiscoitar um prêmio maior, caso conseguisse, com uma vitória sobre o Internacional, galgar posições na tabela de classificação do Brasileirão. E olha que em caso de vitória o Atlético poderia ganhar 5,2 milhões de reais.
Pensamento raso? Impossível pensar diferente, já que o dinheiro, aparentemente desprezado, ajudaria muito a quitar débitos do clube para com os próprios atletas.
Antes do início do jogo Mancini, mais uma vez, tentou justificar as escolhas que fizera, dizendo que vários jogadores que vinham jogando chegaram ao final da temporada bastante desgastados e alguns outros pediram para não jogar. Não há porque duvidar dele, mesmo porque é inegável que esta temporada que se encerra foi de fato bastante pesada e desgastante.
Pena que o Atlético, mais uma vez, contribuiu para que um buchicho desnecessário florescesse. Preço por manter para uma comunicação institucional nula.
Ah, o time que foi a campo até que não decepcionou e, apesar de tomar a virada, permitiu ao Atlético encerrar o ano com dignidade, embora tenha deixado escapar no último terço do jogo uma premiação maior.
Enfim, o Atlético dá adeus a 2019 com excesso de jogos e escassez de títulos, tendo completado neste domingo contra o Inter, 76 jogos, marca superior à de 1973, sem conquistar títulos, acumulando eliminações e correndo risco de rebaixamento.
Chegou o período mais chato do futebol. O Atlético também está na parada? Marquinhos no futebol inglês? Luan vai para o Japão? Chará no Inter? Gabriel de volta? E Tardelli? Terans no Sport? Otero no Palmeiras? Réver no Bragantino? Hyoran e Artur no Galo? Atacante e lateral da Chapecoense? Ariel Holan, Ceni, Carilli ou o espanhol Miguel Angel Ramires? Luan do Grêmio vem ou não vem? Cazares vai embora mesmo? Léo Silva se aposenta ou renova?
Aqui e ali já pipocam inúmeras especulações. Mais do que saber ou imaginar quais desses negócios se confirmarão, o atleticano deveria se preocupar em cobrar da direção do clube um planejamento sério e responsável.
Em minhas velhas aulas de religião, aprendi que Deus disse “faça a sua parte que eu te ajudarei”. Eu que hoje sou agnóstico, aprendi e tenho em mim viva essa lição e espero que os dirigentes atleticanos a tenham também internalizado e compreendido e que a partir de tudo o que aconteceu nesse 2019, saibam planejar um 2020 bem diferente. E Deus certamente abençoará.
Afinal, não dizem que Deus é brasileiro e ATLETICANO?
Ia me esquecendo de lembrar que, a par das ações emergenciais necessárias para garantir que o Atlético em 2020 não sucumba aos efeitos colaterais de tudo de ruim que aconteceu nesse 2019, é preciso pensar o clube à médio e longo prazo, missão indelegável de todo atleticano.
E que a queda do rival não sirva de cortina de fumaça para os problemas do Atlético.
DEUS E O DIABO NAS TERRAS DA ARRUMAÇÃO ATLETICANA, 2019 FOI ASSIM. E DAQUI PARA FRENTE?
Edição: Jéssica Silva
Edição de imagem: André Cantini
Edição de texto: Angel Baldo