A mercearia do Sr. Tião – Por Silas Gouveia
Por Silas Gouveia
Vou preservar os nomes nesta narrativa, pois trata-se de uma história verídica, que envolve minha família e este senhor, que tinha uma mercearia no bairro em que eu morava em minha infância e adolescência, o Renascença!
Minha infância e adolescência foram bastante difíceis do ponto de vista de termos recursos para manter uma família de 10 pessoas. Éramos 8 irmãos, e meu pai nos sustentou como pôde, com sua oficina de marcenaria. Mesmo ele não tendo uma das mãos e a perna esquerda, trabalhava em sua marcenaria fabricando móveis para quem procurava. Tinha bons clientes e conseguia alguns serviços que ajudavam a manter a casa. Mas nem sempre foi tranquilo e muitas vezes não tinha dinheiro para as necessidades básicas, obrigando minha mãe a ter sempre uma caderneta de crédito junto à mercearia do Sr. Tião. Comprávamos praticamente tudo nesta mercearia e o dono anotava na caderneta. Ao final de cada semana, ou por vezes quinzenalmente, fazíamos o acerto, ou pelo menos parte dele.
Obviamente que os preços desta mercearia deviam ser os maiores da região, visto que a maioria de seus clientes usavam deste artifício para fazer suas compras e ele bancava os custos para poder continuar tendo produtos para vender. Era uma via de mão dupla. Ele nos vendia a crédito e nós pagávamos o preço que ele propunha. Não tínhamos muitas outras opções, visto que o dinheiro que meu pai recebia não era suficiente para a manutenção de uma família tão numerosa e seus serviços não eram uma rotina que lhe permitissem bancar um valor fixo mensal. Vivíamos, então, da melhor forma possível, mas sempre condicionados à manutenção do crédito do Sr. Tião. Até que um dia, quando fui comprar arroz pra minha mãe, o Sr. Tião disse que não podia mais anotar nada, pois havia um mês que não acertávamos a conta. Foi um baque!
Daquele dia em diante, tivemos de reduzir nosso consumo, procurar outras fontes de renda (lembro que passei a vender picolé e a engraxar sapatos na praça), até que minha mãe conseguiu um empréstimo no banco e conseguimos pagar nossas contas. Era um alívio momentâneo, mas que serviria para que buscássemos outras formas de sobrevivência. Meus irmãos (pelo menos 3 deles) conseguiram empregos nesta mesma época e as coisas deram uma melhorada. Assim que eles receberam seus primeiros salários, passamos a fazer compras mensais em supermercados e, cada vez menos, depender da caderneta da mercearia do Sr. Tião. Até que um dia ele nos procurou para perguntar porque paramos de comprar com ele. Minha mãe respondeu apenas que: “Agora meus filhos estão ajudando em casa e podemos fazer compras mensais em um Supermercado!” Lembro-me do misto de satisfação e ao mesmo tempo de reflexão, sobre esta conversa. Estávamos nos livrando de uma ciranda financeira e conseguindo melhorar nossa condição de vida, mas ao mesmo tempo estávamos dispensando uma pessoa que, da forma como o mercado permitia, nos ajudou nos momentos mais difíceis que nós passamos, quando não tínhamos dinheiro para pagar as contas.
Mas “que diabos esta história tem a ver com o Galo?”, perguntam, de imediato, nossos leitores. Foi a forma mais didática que imaginei para montar um paralelo entre o que parece estar acontecendo com o CAM e seu relacionamento quase nefasto com seus credores. Em especial, com alguns empresários de jogadores, a quem o CAM deve muita grana até hoje. É como se eu tivesse vendo a caderneta do Sr. Tião, nas mãos de alguns empresários. Cada um com sua continha a ser paga pelo clube. Os preços, via de regra, são muito maiores do que de fato valeria. Mas, para quem não tem como tirar grana de outras fontes, sujeitar-se a estas pessoas não é de todo uma má ideia. Na verdade, pode até mesmo ser a única disponível.
Mas o CAM não teria uns irmãos para poder arrumar uns empregos e ajudar com as contas? Pois é! Tem… Mas parece que não. No máximo, aparecem alguns parentes que podem emprestar algum dinheiro, mas que também cobram algum juro, em geral maiores que os de mercado. Esses parentes ajudam a “empurrar” estas dívidas um pouco mais para frente, enquanto o Galo busca formas de aumentar sua renda em médio ou curto prazo, e, assim, poder, um dia, dispensar a caderneta dos empresários que ajudam neste momento. E, assim que conseguirem este aumento de receitas, a promessa é a de nunca mais entrar novamente neste jogo de cartas já conhecidas.
Mas como fazer então para que este aumento de receitas possa vir o mais rápido possível? Algumas propostas já são bastantes claras.
Vendas de jogadores sempre rende um dinheiro razoável aos cofres dos clubes. O difícil sempre é achar quem pague bem por atletas que possam ser dispensados pelo clube. Caso contrário, o clube fica sempre na iminência de vender suas joias para poder fazer seu caixa. E joias devem ser sempre muito valorizadas, pois nunca se sabe quando poderemos ter dinheiro para investir em outras joias. E um time sem nenhuma delas será sempre um time mediano. O CAM tem até tentado “penhorar” algumas destas joias. Empréstimos de jovens atletas a preços irrisórios, mas com cláusula de revenda futura. Tem ainda o caso do empréstimo do Otero, que mais pareceu uma venda, mas que parece estar de volta. Esta aliás, é uma joia que o CAM não parecia muito inclinado a recuperar. Acho que ainda irão tentar botar no “prego” ao invés de repatriar, pois ainda devem este jogador ao clube anterior.
Outra fonte de recursos de qualquer família que se encontra endividada e também parece ser o caso do CAM, é desfazer-se de algum bem imóvel. No caso de minha família, não tínhamos, mas o CAM ainda tem 49% do Diamond Mall. O que seria mais interessante? Vender um imóvel que você recebe aluguel mensalmente, mas que este aluguel não está ajudando tanto assim nas despesas mensais, e com este dinheiro, pagar as dívidas, principalmente aquelas contraídas junto a bancos e instituições financeiras e que os juros consomem grande parte de seu orçamento? Ou manter seu imóvel, que bem ou mal ainda te rende uma fonte de recursos mensais e procurar outras formas de tentar viabilizar o pagamento de suas dívidas? Quase uma escolha de Sofia! Fico imaginando se, talvez, não fosse o caso de sugerir a venda de outros ativos do Clube.
Claro que usei de metáforas e situações análogas de meu cotidiano de infância para tratar de um tema que é muito mais complexo. Mas achei que desta forma poderia ajudar às pessoas a entender melhor a situação do CAM. Não quero com isto jamais desmerecer o trabalho e os resultados que a diretoria do CAM está tendo para conseguir sanar estes problemas. É fato que grande parte da torcida tem dificuldade para entender bem o que se passa. Também não cabe aqui, nesta coluna, tecer quaisquer comentários ou críticas aos que ajudaram negativamente para que estas dívidas chegassem aos patamares que estamos presenciando. Isto deveria ser motivo de uma discussão mais profunda e, quem sabe, inclusive, de uma proposição de uma Ação Civil Pública contra as administrações que fizeram com que esta instituição chegasse neste nível de endividamento. Mas, como eu disse, não é o foco desta discussão levantada aqui.
Para não dizer que não citei nomes de nossos credores, os verdadeiros donos das mercearias onde o CAM tem suas cadernetas são: Giuliano Bertolucci e André Cury como os maiores credores, seguidos de Fabio Melo (este envolvido nas negociações da vinda do Rever, Igor Rabelo e a renovação de contrato do Patric), Spadotto, Uran e mais dois outros que não foram citados nas entrevistas que saíram na imprensa e confirmada pelo diretor financeiro à época. Estes nomes foram citados publicamente em entrevista do Diretor Financeiro do CAM recentemente, como sendo aqueles que mais devemos dinheiro. Somente a título de informação, o empresário que cuida das carreiras de Alerrandro e Carlos César, é o mesmo: Renato Moura. Já o empresário do Igor Rabelo é o Anselmo Paiva.
Quando pagarmos as dívidas destas cadernetas, poderemos, quem sabe, ir ao Supermercado do futebol sem nenhuma amarra de crédito ou quaisquer outras amarras pessoais e de favores que possam existir. Até lá, o que nos resta e continuar com a caderneta do Sr. Tião e nos sujeitar sempre ao que nos exige para utilizar de sua mercearia.